quarta-feira, 16 de julho de 2008

Asas

Foi na viagem de regresso a casa. Vínhamos do teu último tratamento.
Tu, sentado no lugar do pendura do teu próprio carro, desabafaste:
-Quando um gajo finalmente se apercebe de toda a merda que fez na vida nem tempo tem de se arrepender...
Aquelas palavras caíram-me em cima como tijolos lançados de um 6º andar.
[ainda tenho as marcas]
Apressei-me a tecer considerações sobre a vida, os arrependimentos, o tempo e o que fazemos dele. Fiz uso de frases de outros, chavões e pensamentos mais que batidos. Tentei ser convincente e tentei convencer-me.
Não acreditei numa palavra do que disse, tão embrulhada que estava na minha frustração que só a tua a superava.
[Estavas certo, pá. Pela primeira vez, estavas certo]
Senti raiva, senti medo, desesperei.
(...)
O telefonema chegou pouco antes do sol. Tinha o telemóvel no peito. Peguei nele. Começou, silenciosamente, a tocar.Inspirei. Inspirei muito fundo antes de atender.
- 'tou....
- Morreu... (a voz, embargadíssima por horas de choro)
- ...como um passarinho (acrescentou)
Não me saiu nada. Chorei muito. De alívio.
[Bateste asas, no dia do teu aniversário, sob o olhar atento daqueles dois que também te viram nascer]
Como um passarinho, disse o teu Pai.

6 comentários:

Mim disse...

;(
E ate nestes momentos, me lembro dos cheiros que descrevias...
Beijo.

Ti disse...

Ainda os sinto nas mãos...

Ana disse...

ficou mirrado o meu coração :(
* abraço-te

Donagata disse...

Sem palavras. Simplesmente sem palavras...

nando disse...

Este foi o primeiro post que li deste blogue. E a tristeza que aqui se expõe ficou. As palavras que se aliham para expor essa tristeza. Oferecida a quem lê, para que a sinta também.
É raro.

Ti disse...

Obrigada, Nando. Este e o "glicínias" saíram cá de dentro duma rajada só... qd marca, marca mm...